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Fonte: Dynair Souza

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O discurso de proteção à infância tem ocupado espaço no ordenamento jurídico brasileiro, mas, na prática, muitas mães que buscam salvaguardar seus filhos de pais abusivos encontram na Justiça não um porto seguro, mas um novo campo de batalha. Em inúmeros processos de guarda e regulamentação de convivência, essas mulheres são tratadas como descompensadas, desequilibradas ou mesmo “loucas”, quando denunciam comportamentos violentos ou perturbadores por parte do genitor.

A maternidade, que deveria ser protegida, é submetida a um crivo de desconfiança e patologização. A alegação de distúrbios psicológicos dessas mães por parte do pai de seus filhos, mesmo quando  a luta destas é respaldada por provas documentais e relatos consistentes, é frequentemente ignorada ou relativizada por profissionais das equipes psicossociais, promotores  e magistrados. O ônus da prova se torna quase intransponível, e a mãe passa a ocupar o lugar de ré — não pelos seus atos, mas por sua coragem em denunciar.

Esse fenômeno é reflexo de uma estrutura patriarcal ainda presente no Judiciário brasileiro, que se manifesta na tentativa de silenciar e deslegitimar a experiência feminina, especialmente quando ela confronta a autoridade paterna. Como observa Saffioti (2004), “a violência de gênero é também simbólica, pois incide sobre a representação das mulheres, sobre sua credibilidade e seu direito à palavra”.

A tentativa de proteger os filhos é muitas vezes confundida — ou propositalmente deturpada — como alienação parental, conceito que vem sendo amplamente questionado por especialistas. Segundo Daniela Pedroso, psicóloga do Tribunal de Justiça de São Paulo, “há uma instrumentalização da noção de alienação parental como retaliação contra a mãe que denuncia violência, transformando a vítima em autora de um suposto abuso psicológico” (PEDROSO, 2021).

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar à criança o direito à dignidade e à convivência familiar livre de violência. A Lei nº 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, reforça a necessidade de escuta qualificada e acolhimento sensível. No entanto, o que se vê é o uso de pareceres técnicos não conclusivos ou produzidos sem critérios rigorosos, muitas vezes sem sequer ouvir a criança, violando os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta.

Além disso, o Princípio do Melhor Interesse da Criança, amplamente consagrado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e por tratados internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, é esvaziado quando o Judiciário se apega à formalidade da guarda compartilhada e da convivência familiar sem avaliar os reais riscos envolvidos.

É urgente repensar a atuação do sistema de justiça nos conflitos familiares que envolvem alegações de violência. Mães que denunciam não são loucas — são corajosas. Loucura, na verdade, é perpetuar estruturas que colocam crianças em risco em nome de uma falsa neutralidade judicial.

Enquanto a proteção materna for tratada como histeria e as denúncias como arma de guerra judicial, estaremos falhando duplamente: com as mulheres que lutam sozinhas e com as crianças que o Estado jura proteger.

Por: Dynair Souza, advogada especializada em Direito de Família e Planejamento Patrimonial Familiar Sucessório, Mestre em Direito, Vice-presidente do Instituto Mato-Grossense de Advocacia Network – IMAN

Instagram: @advocaciadynairsouza

Website: www.dynairsouza.com.br

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